quarta-feira, 22 de abril de 2009

Disciplina Espiritual






Por Georg Feuerstein




DISCIPLINA - ISTO É, a regulação ordenada da mente - é um pré-requisito fundamental do progresso espiritual. Há aqueles que pensam que o despertar espiritual, ou iluminação, é espontâneo e não exige nenhuma ação da nossa parte. Alguns chegam a considerar todo e qualquer esforço como um obstáculo à iluminação, mas essa idéia não abarca toda a verdade. É certo que todos os grandes sábios afirmaram que a iluminação é o nosso estado natural, mas também sempre insistiram na necessidade e uma preparação adequada. Se alguns santos, como Ramana Maharshi, alcançaram a iluminação aparentemente sem esforço, temos de ter certeza de que eles se prepararam por muitas existências para esse momento auspicioso. É essa a explicação tradicional do seu despertar instantâneo. Sem a noção do renascimento, porém, só nos resta uma outra explicação – a saber, a de que sua iluminação aconteceu por acaso; eles tiveram sorte. Se aceitássemos isso, teríamos de pressupor também que todo esforço espiritual é pura perda de tempo. Nesse caso, poderíamos viver como quiséssemos e esperar pelo melhor. Mas é exatamente isso que, atualmente, a imensa maioria das pessoas optou por fazer, e o destino individual que alcançaram não e segredo para ninguém: em vez de serem livres, sofrem de uma infelicidade tremenda.
Deixando de lado toda discussão metafísica sobre a natureza da iluminação e como ela se realiza, não podemos negar que progredimos espiritualmente na consciência, na felicidade e na capacidade de autotranscendência - em virtude de nossa aplicação aos valores e ideais espirituais. A palavra aplicação, neste contexto, significa a tradução desses ideais ou valores para a prática cotidiana. E exatamente a isso que se refere o conceito sânscrito de sâdhana ou disciplina espiritual. A palavra é derivada da raiz verbal sâdh, que significa "realizar". A mesma raiz dá origem às palavras siddhi (realização ou perfeição) e siddha (ser realizado ou adepto). A realização se dá em diversos níveis, e entende-se que o último deles seja a iluminação. O siddha é, em geral, o adepto que alcançou a iluminação. A pessoa que pratica uma disciplina espiritual é chamada um sâdhaka, quando é homem, ou uma sâdhikâ, quando é mulher.
A disciplina espiritual é acima de tudo e antes de mais nada o treinamento da mente, isto é, o disciplinamento daqueles aspectos da nossa vida interior que nos impedem de realizar nossa iluminação inata ou natural. Que aspectos são esses? O mais importante de todos os bloqueios é nossa ignorância (avidyâ) da Realidade tal como ela é: ou seja, nossa cegueira espiritual básica, que não só nos impede de ver a Realidade como também a distorce e a apresenta para nós de maneira enganosa. Essa distorção e esse engano expressam-se na ilusão de que somos separados de todos os outros seres e coisas. São funções da asmitâ ("qualidade de ´eu sou`”) ou do ahamkâra ("factor do eu"), a personalidade egóica, que faz de cada um de nós uma ilha no meio de um mundo supostamente hostil, no qual temos de lutar pela sobrevivência. Tudo isso também pode se resumir sob o nome de "ilusão" (moha).

Um dos aspectos de moha é a noção de que pensar sobre a iluminação é suficiente para realizá-la. Não poucos praticantes ocidentais caíram vítimas desse erro por não terem compreendido a distinção entre a compreensão intelectual ou mental e o conhecimento verdadeiro. A primeira permanece no nível abstrato e teórico, ao passo que o segundo representa o influxo da sabedoria na mente, que provoca a verdadeira transformação interior seguida de adequadas mudanças de comportamento. Podemos já ter compreendido, por exemplo, que vivemos a maior parte da nossa vida num estado de sonambulismo; mas essa compreensão não basta para nos despertar. Temos também de praticar em todos os momentos a autoconsciência ou a recordação do nosso Verdadeiro Ser. Ou senão, para dar outro exemplo, podemos já ter reconhecido que somos infelizes e buscamos erroneamente a felicidade nos objetos externos; esse reconhecimento por si só, porém, não basta para nos dar a felicidade; temos também de parar de tentar arrancá-la à força dos seres e das coisas, e temos de tomar as medidas necessárias para descobri-la dentro de nós.

A ignorância da nossa verdadeira natureza (que é eternamente livre, feliz e luminosa) e a falsa noção de "eu" que nasce dessa ignorância também geram em nós um estado fundamental de medo (bhaya). Esse medo pode se manifestar sob as formas de medo de uma outra pessoa, medo da mudança, medo do desconhecido, medo da morte, etc. O medo destrói nossa felicidade e liberdade naturais. Também pode nos impedir de encetar a prática espiritual.
Outro resultado da ignorância e do egocentrismo fundamentais é uma atitude de cobiça ou ganância (lobha) em relação à vida. Acumulamos à nossa volta um sem-número de coisas para esconder o medo e a sensação de mediocridade e para reforçar a falsa noção de que somos um ser independente, uma personalidade egóica existente por si mesma. A cobiça, como o medo, assume muitas formas, entre as quais o que se pode denominar de "consumismo espiritual" - a comuníssima atitude de acumular mestres e doutrinas como se fossem os valiosos objetos de uma coleção. Uma vez que a vida espiritual se baseia na autotranscendência sincera e na disciplina coerente e constante, ela não pode ser "comprada". O consumismo espiritual só nos da acesso às falsificações e contrafações da espiritualidade, as quais não podem nem jamais poderão nos conduzir à felicidade e à liberdade verdadeiras.
A ignorância espiritual e o egocentrismo também se manifestam na raiva ou ira (krodha), uma emoção particularmente negativa que tenciona a destruição daquele que a tem e de todos os outros. Num contexto espiritual, a raiva se apresenta na rejeição colérica de qualquer tipo de disciplina, bem como dos mestres e doutrinas que defendem e propõem uma tal disciplina. A personalidade egóica, por uma tendência própria, não quer mudar nem quer sofrer nenhum tipo de interferência. Porém, todas as práticas espirituais foram criadas exatamente para romper as barreiras do ego de tal modo que a luz do Si Mesmo (âtman) possa entrar e reintegrar o ser humano com o restante do universo.
No decorrer dos milênios, os grandes mestres do Yoga desenvolveram numerosos sistemas de treinamento da mente que atendem às exigências da iluminação (bodha). Todos têm por objetivo a eliminação da ignorância, do egocentrismo, do auto-engano, da cobiça, da ira e de outros obstáculos à iluminação. Qualquer que seja o sistema adotado, todos exigem duas coisas: constância na prática (abhyâsa), de um lado, e impassibilidade (vairâgya) ou indiferença aos desejos, de outro. A prática, ou disciplina constante, tem o objetivo de penetrar a ilusão do ego e assim revelar a Realidade, ao passo que a impassibilidade é o meio pelo qual podemos nos livrar dos lastros indesejáveis que estorvam nosso caminhar rumo à realização da liberdade e da felicidade verdadeiras. Juntas, a prática e a impassibilidade nos conduzem até a iluminação. Passo a passo, renunciando a tudo o que mascara a Realidade, realizamos nossa verdadeira natureza. Porém, é preciso dar esses passos. O simples pensamento não nos levará a lugar algum. Só o órgão da sabedoria – buddhi - tem o poder de nos transformar de modo a fazer brilhar nossa natureza original. Os mestres do Yoga nos garantem que sempre fomos, somos e seremos iluminados, mas esse fato tem de se tornar para nós o objeto de uma apercepção imediata e contínua. E essa realização só pode se dar por meio da disciplina espiritual.